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Spinosaurus - O maior carnívoro de todos os tempos - Notícia OVGA 23-10-2018

Trabalhadores limam as arestas do esqueleto em tamanho real com anatomia exata do Spinosaurus criado a partir de dados digitais. O modelo recorreu a TAC de fósseis, imagens de ossos perdidos e extrapolações de criaturas aparentadas. Foi construído com poliestireno, resina e aço.

Créditos: National Geographic / Mike Hettwer

 

Na noite de 3 de Março de 2013, o jovem paleontólogo Nizar Ibrahim estava sentado num café da cidade marroquina de Erfoud, vendo a luz do dia a esbater-se e sentindo que as suas esperanças se esbatiam com ela. Na companhia de dois colegas, Nizar chegara a Erfoud três dias antes para descobrir um homem capaz de solucionar um mistério que o preocupava obsessivamente desde a infância. 

O homem que Nizar procurava era um fouilleur, um caçador de fósseis local que vende os seus achados a lojas e comerciantes. Entre os achados mais valiosos, encontram-se os ossos de dinossauro dos leitos de Kem Kem, uma escarpa com 240 quilómetros de comprimento contendo depósitos do Cretácico Médio, mais concretamente de 100 a 94 milhões de anos. Depois de andarem vários dias à procura nos locais de escavação junto da aldeia de El Begaa, os três cientistas tinham decidido deambular pelas ruas da cidade na esperança de se cruzarem com o homem. Por fim, exaustos e deprimidos, entraram num café para beber chá de menta e lamentar-se. “Os meus sonhos pareciam fugir-me por entre os dedos”, recorda Nizar.

Os sonhos de Nizar enredavam-se, inseparáveis, nos de outro paleontólogo que se aventurara no deserto um século antes. Entre 1910 e 1914, o aristocrata bávaro Ernst Freiherr Stromer von Reichenbach e a sua equipa realizaram várias expedições prolongadas ao Saara egípcio, na extremidade oriental do antigo sistema ribeirinho cuja fronteira ocidental é formada por Kem Kem.

Entre as suas descobertas incluíam-se dois esqueletos incompletos de um magnífico dinossauro novo, um predador gigante com mandíbulas de um metro de comprimento repletas de dentes cónicos.

Apesar das doenças, das dificuldades impostas pelo deserto e do agravamento das tensões sociais que conduziriam à Primeira Grande Guerra, Ernst Stromer descobriu cerca de 45 táxones diferentes de dinossauros, crocodilos, tartarugas e peixes. Entre as suas descobertas incluíam-se dois esqueletos incompletos de um magnífico dinossauro novo, um predador gigante com mandíbulas de um metro de comprimento repletas de dentes cónicos. No entanto, a sua característica mais extraordinária era a estrutura semelhante a uma vela com 1,80 metros no seu dorso, suportada por esteios ou espinhas inconfundíveis. O aristocrata chamou ao animal Spinosaurus aegyptiacus

Expostos em lugar de destaque na Colecção de Paleontologia e Geologia do Estado Bávaro, no centro de Munique, estes achados tornaram-no famoso. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele tentou desesperadamente retirar a coleção de Munique.

Um modelo do Spinosaurus, um predador do Cretácico, tem um tratamento privilegiado nesta sessão fotográfica. Créditos: National Geographic

 

Contudo, o diretor do museu, um nazi fervoroso que não gostava de Stromer devido às suas críticas ao regime, recusou-lhe o pedido. Em Abril de 1944, o museu e a quase totalidade dos fósseis de Stromer foram destruídos num ataque aéreo. Tudo o que restou do Spinosaurus foram apontamentos de campo, desenhos e fotografias em tons de sépia. O nome de Stromer esbateu-se gradualmente da bibliografia académica.

Criado em Berlim, Nizar Ibrahim encontrou pela primeira vez o estranho colosso de Stromer num livro infantil alemão sobre dinossauros. Desse dia em diante, começou a imaginar dinossauros. Fazia rastos de terópodes com três dedos na praia e as suas bolachas preferidas tinham a forma de dinossauros. Visitou coleções paleontológicas por toda a Alemanha e criou uma impressionante coleção de modelos e moldes de fósseis.
Voltou a encontrar o trabalho de Stromer quando estudava paleontologia na Universidade de Bristol. “A amplitude e profundidade do seu trabalho eram incríveis e inspirei-me nele para ser ambicioso na minha própria investigação”, conta. Embora a maioria dos alunos de doutoramento aborde temas de âmbito bastante restrito, a dissertação de 836 páginas apresentada por Nizar Ibrahim ao University College de Dublin descrevia o registo fóssil de Kem Kem na sua totalidade.

O trabalho de campo realizado para o doutoramento levou-o várias vezes a Erfoud. Numa visita em 2008, quando tinha 26 anos, um beduíno mostrou-lhe uma caixa de cartão com quatro blocos de rocha de um distinto tom de roxo atravessada por riscas formadas por sedimentos amarelos. Espreitando entre a rocha havia algo que aparentava ser um osso da pata dianteira de um dinossauro e um pedaço de osso plano com um invulgar corte transversal de cor branca leitosa. À semelhança do que sucede a todos os fósseis descuidadamente arrancados ao seu contexto geológico, o valor científico dos ossos era duvidoso. Nizar ofereceu-se para comprá-los de qualquer forma, pensando que poderiam ter alguma utilidade para a pequena e nova coleção de paleontologia da Universidade de Casablanca.

Nizar compreenderia a gigantesca importância desses ossos durante uma visita no ano seguinte ao Museu de História Natural de Milão. Os investigadores Cristiano Dal Sasso e Simone Maganuco mostraram-lhe um esqueleto incompleto recebido de um vendedor de fósseis pouco tempo antes.

Pioneiro da paleontologia, Ernst Stromer explorou o Saara Oriental em vésperas da Primeira Grande Guerra. As suas descobertas, incluindo o Spinosaurus, lançaram luz sobre o Cretácico em África, momento crucial da história da erra, marcado pela fragmentação do supercontinente Gonduana. Créditos: Stromer Family Trust.

 

O espécime estava disposto sobre mesas na cave: ossos das patas, costelas, um grande número de vértebras e várias caraterísticas espinhas dorsais altas. Nizar ficou boquiaberto: tratava-se seguramente de um Spinosaurus, substancialmente mais completo do que os espécimes perdidos de Ernst Stromer. Cristiano e Simone disseram-lhe que o vendedor achava que fora escavado num sítio chamado Aferdou N’Chaft, perto de El Begaa. Os ossos ainda estavam incrustados na rocha onde tinham sido enterrados, um arenito roxo com riscas amarelas. Pegando num pedaço de espinha, Nizar viu uma secção transversal branca familiar.

 “Percebi que os ossos que tinha comprado em Erfoud deveriam ser de Spinosaurus. Aquele estranho osso plano era um pedaço de espinha”, recorda. Ocorreu-lhe então que os fósseis desconexos de Erfoud e o magnífico espécime de Milão poderiam pertencer ao mesmo indivíduo.

Se assim fosse e se ele conseguisse descobrir, com exatidão, o local onde tinham sido encontrados, aqueles fósseis poderiam transformar-se numa Pedra de Roseta para o conhecimento do Spinosaurus e do seu mundo.

No entanto, teria primeiro de encontrar o beduíno.
“Não sabia o nome dele e só me conseguia lembrar que tinha bigode e vestia de branco”, conta. “Em Marrocos, não são propriamente caraterísticas raras!”, brinca.

Descoberto no Egipto em 1912, o espécime de Stromer foi destruído por um bombardeamento em Munique na Segunda Guerra Mundial. Os paleontólogos utilizaram estas fotografias raras para reconstituir em formato digital os ossos perdidos. Combinando-as com descobertas mais recentes, produziram um esqueleto com 15 metros de comprimento. Créditos: Coleção de Paleontologia e Geologia do Estado Bávaro, em Munique.

Créditos: Coleção de Paleontologia e Geologia do Estado Bávaro, em Munique.

 

Em Março de 2013, Nizar regressou a Erfoud para tentar algo muito mais difícil do que encontrar uma agulha num palheiro: procurava um beduíno no deserto. Acompanhado por Samir Zouhri, da Universidade Hassan II, e de David Martill, da Universidade de Portsmouth, visitou vários sítios de escavação, começando por Aferdou N’Chaft. Ninguém parecia reconhecer as fotografias que Nizar tirara aos fósseis de Spinosaurus nem reconhecer o beduíno a partir da vaga descrição. Depois de uma busca pelas ruas de Erfoud, durante o último dia passado na cidade, tinham por fim desistido e sentaram-se pesarosamente num café.

Enquanto olhavam inexpressivamente para as pessoas que andavam pela rua, um homem de bigode vestido de branco passou à sua frente. Nizar e Samir trocaram olhares e depois saltaram dos seus lugares, lançando-se atrás dele. Era aquele homem. Ele confirmou que retirara os ossos de uma vertente rochosa ao fim de dois meses de trabalho árduo, desenterrando primeiro os ossos que vendera a Nizar e encontrando depois outros num ponto mais adiante, na mesma encosta, que acabou por vender a um comerciante de fósseis italiano em Itália por cerca de 10.600 euros. Porém, quando lhe perguntaram se poderia mostrar-lhes o local da descoberta, o homem recusou. Nazir fala árabe e explicou-lhe que era fundamental para ele saber onde os fósseis tinham sido descobertos e a razão por que essa informação poderia, um dia, permitir o regresso dos fósseis a Marrocos, passando a fazer parte de uma nova coleção museológica em Casablanca. Por fim, o beduíno, que o escutara em silêncio, anuiu. “Eu mostro-lhes”, afirmou.

Depois de atravessarem a plantação de palmeiras a norte de Erfoud, no seu Land Rover amolgado, o homem conduziu-os a pé ao longo de um wadi seco, subindo de seguida uma ribanceira íngreme. Os estratos nas falésias em redor mostravam que grandes rios serpenteantes tinham corrido por ali há cem milhões de anos.

Perseguidor de fósseis – Nizar Ibrahim, explorador-emergente da National Geographic, segiu o rasto de um esqueleto de Spinosaurusaté ao seu local de origem no Sudeste de Marrocos, onde fora descoberto por um caçador de fósseis amador anos antes. Créditos: National Geographic

 

Por fim, chegaram a um buraco numa encosta, que fora em tempos a margem de um rio. “Ali”, disse o beduíno. Nizar entrou no buraco, reparando nas paredes de arenito arroxeado com riscas amarelas.

Para Ernst Stromer, o Spinosaurus foi o enigma da sua vida. Durante décadas, esforçou-se por conhecer a estranha criatura a partir dos pedaços de dois esqueletos descobertos pela sua equipa. A princípio, especulou que as suas longas espinhas neurais poderiam ter suportado uma bossa sobre os ombros, como a de um bisonte, mas mais tarde conjeturou que fariam parte de uma vela dorsal, parecida com a de alguns lagartos e camaleões da atualidade. Observou que as mandíbulas estreitas do Spinosaurus eram singulares entre os dinossauros predadores, o mesmo se podendo dizer dos seus dentes — a maioria dos terópodes carnívoros possuía dentes serrilhados em forma de lâmina, mas estes eram lisos e cónicos, assemelhando-se aos de um crocodilo. Stromer concluiu, com uma perplexidade evidente e talvez uma certa frustração, que o animal era “altamente especializado”, sem afirmar qual a sua especialização.

Spinosaurus fazia parte de um mistério maior, por vezes denominado Enigma de Stromer, e comum a outros fósseis descobertos no Norte de África: em quase todos os ecossistemas antigos e contemporâneos, os herbívoros excediam em grande número os carnívoros. No entanto, na extremidade setentrional do continente africano, desde o local das escavações egípcias de Stromer, a leste, até aos leitos marroquinos de Kem Kem, a oeste, o registo fóssil sugeria o oposto. Com efeito, esta região foi habitada por três enormes carnívoros: o ágil Bahariasaurus, com 12 metros; o Carcharodontosaurus, uma versão africana do T. rex, igualmente com 12,5 metros; e o Spinosaurus, possivelmente maior. Stromer interrogou-se sobre a provável presença de grandes herbívoros (que mais poderiam os carnívoros ter comido?) mas poucos dos seus ossos apareceram até à data. Na opinião de outros cientistas, o paradoxo é um mero erro de amostragem ou o resultado da ação de caçadores de fósseis que dão preferência a carnívoros de grande porte porque estes se vendem melhor.

Com um novo Spinosaurus à mão e o conhecimento do local exato onde foi encontrado, Nizar Ibrahim estava na posição certa para dar uma resposta mais satisfatória ao Enigma de Stromer. Contudo, os novos ossos tornavam o animal ainda mais intrigante. Para começar, a superfície das espinhas dorsais era lisa, denotando a improbabilidade de terem servido de suporte a um volume grande de tecidos moles, semelhante a uma bossa. As espinhas tinham poucos canais para vasos sanguíneos, por isso parecia improvável que fossem utilizadas para regular a temperatura corporal, como outros investigadores tinham conjeturado. As costelas eram igualmente densas e curvas, criando um invulgar tronco em forma de barril. O pescoço era longo e o crânio enorme. No entanto, as mandíbulas eram surpreendentemente esguias e alongadas, com um peculiar focinho arqueado com fossas nasais minúsculas. Os membros anteriores e a caixa torácica apresentavam-se volumosos, ao passo que os membros posteriores eram desproporcionalmente curtos e esguios. “O Spinosaurus possui uma dianteira incrivelmente pesada”, afirma o paleontólogo Paul Sereno, supervisor da investigação de pós-doutoramento de Nizar Ibrahim na Universidade de Chicago. “É como um híbrido resultante do cruzamento de um aligátor com uma preguiça.”

Nizar pendurara uma imagem em tamanho real do crânio do animal na parede do seu gabinete e fixava-a frequentemente. “Tentava ver todos os ossos, músculos, tecido, tudo. Por vezes, estavam lá durante um instante. Depois desapareciam, como uma miragem. O meu cérebro não conseguia articular aquela complexidade.”

Mas um computador poderia fazê-lo. Juntando-se a Simone Maganuco, do Museu de Milão, e a Tyler Keillor, preparador de fósseis e paleoartista da Universidade de Chicago, Nizar empenhou-se em realizar a reconstrução digital do dinossauro. A equipa fez TAC a cada osso do seu espécime no Centro Médico da Universidade de Chicago e no Hospital Maggiore, em Milão, e depois acrescentou-lhes outras partes do corpo digitalizando fotografias de espécimes de museus de Milão e Paris, bem como imagens digitais das fotografias e desenhos de Stromer.

Em 2013, os colegas italianos de Nizar Ibrahim, Cristiano Dal Sasso e Marco Auditore, procuraram mais peças do esqueleto. Créditos: National Geographic

 

Especialista no programa de modelação digital ZBrush, Tyler esculpiu os ossos em falta no “barro digital” do ZBrush, cartografando o seu trabalho com digitalizações da mesma anatomia de dinossauros espinossaurídeos aparentados como o Suchomimus e o Baryonyx. Moldando e espaçando as 83 vértebras do seu modelo, a equipa determinou que um Spinosaurus adulto media 15 metros desde o focinho até à cauda. Fora afirmado que o Spinosaurus era o maior carnívoro na Terra. 

A informação agora confirmava-o, já que o maior T. rex tem 12,5 metros da cabeça até à cauda.

De seguida, o esqueleto foi envolvido em pele digital para criar um modelo dinâmico, que permitiu uma estimativa do centro de gravidade e da massa corporal do animal e um melhor entendimento da forma como se deslocava. A análise conduziu a uma conclusão notável: ao contrário dos outros dinossauros predadores, que caminhavam sobre os membros posteriores, o Spinosaurus poderá ter sido um quadrúpede funcional, recorrendo igualmente aos seus membros dianteiros, eriçados de garras, para caminhar.

As características da criatura só começaram a fazer sentido quando Nizar e os seus colegas olharam para o Spinosaurus de um ponto de vista diferente: como um dinossauro que passava a maior parte do tempo dentro de água. As narinas apresentam-se implantadas num ponto alto do crânio, junto aos olhos, permitindo ao animal respirar com grande parte da cabeça submersa. O tronco em forma de barril faz lembrar os golfinhos e as baleias e a densidade das suas costelas e ossos longos é semelhante à do manatim. Os membros posteriores, com proporções tão bizarras para caminhar, seriam adequados para nadar, sobretudo se as garras planas da sua larga pata traseira estivessem interligadas por membranas, como as de um pato. As suas mandíbulas longas e estreitas, e os dentes lisos, cónicos e semelhantes aos do crocodilo, seriam devastadores para a captura de peixes; quanto às fossas nasais do seu focinho, igualmente presentes em crocodilos e aligatores, continham provavelmente sensores de pressão para detcção de presas em águas turvas. Nazir imagina o Spinosaurus inclinando-se em frente e capturando os peixes com o seu longo focinho.

Reprodução ilustrada do Spinosaurus: crê-se que vivia sobretudo no meio aquático, pois as narinas apresentam-se implantadas num ponto alto do crânio, junto aos olhos, permitindo ao animal respirar com grande parte da cabeça submersa.

Créditos: Nizar Ibrahim, Universidade de Chicago; Cristiano Dal Sasso e Simone Maganuco, Museu de História Natural de Milão.

 

Esta nova visão do Spinosaurus como dinossauro aquático sugere uma possível solução para o Enigma de Stromer. O rio em cujas margens este animal morreu era uma de muitas vias de grandes dimensões num vasto sistema fluvial que ocupava grande parte do Norte de África no Cretácico. Se os carnívoros aqui existentes fossem grandes, os animais aquáticos também o seriam. Esses vestígios são comuns nos depósitos de Kem Kem: dipnóicos com 2,5 metros, celacantos com 4 metros, peixes-serra com 7,5 metros e tartarugas de tamanhos igualmente exagerados. Estes animais seriam refeições saudáveis até para o maior dos predadores, eliminando a necessidade de um número abundante de grandes herbívoros para equilibrar a cadeia alimentar.

Tudo isto tomou de assalto a mente de Nizar Ibrahim, ao atingir a fase culminante do projeto digital dos dinossauros: um esqueleto de Spinosaurus em tamanho real, feito de espuma de poliestireno de alta densidade, parcialmente criado por uma impressora 3D com base no modelo informático. O esqueleto está montado em posição natatória, na qual, segundo Nizar, o animal poderia chegar a passar 80% do tempo. “Gostava que Ernst Stromer pudesse ver este modelo, que mostra como o Spinosaurus se tornou um nadador especializado. Tê-lo-ia feito sorrir.” 

 

Fonte: National Geographic Portugal