Notícia -A A +A

Iannis Xenakis: o homem que fez música usando matemática - Notícia OVGA B 31-08-2017

 

Maria do Carmo Martins

Professora do Departamento de Matemática e Estatística

Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade dos Açores

[email protected]

 

Nos dias 17 e 18 de julho passado realizou-se, na Universidade de Évora, o encontro “Matemática e Arte” dirigido a alunos de licenciatura, mestrado e doutoramento, investigadores e professores dos ensinos básico e secundário. O objetivo era dar a conhecer o que se faz em Portugal no âmbito das interações entre matemática e os diferentes tipos de expressão artística.

Um dos oradores convidados foi Benoît Gibson, professor associado daquela universidade, que dirige o Departamento de Música. Proferiu uma palestra intitulada “A matemática e a música na obra do compositor Iannis Xenakis”.

Caro leitor, na impossibilidade de lhe oferecer um trecho musical de Xenakis, decidi escrever uma pequena nota biográfica sobre este. Citando as palavras do resumo de Benôit: “Iannis Xenakis figura entre os compositores mais notáveis do século XX. Músico, arquiteto, apaixonado por astronomia e literatura grega antiga, foi um dos primeiros compositores modernos a prever a necessidade de uma abordagem da música mais abrangente, que não se limitasse à tradição da música ocidental. O seu esforço em ultrapassar as barreiras entre a música e outras áreas do conhecimento abriu novos caminhos composicionais.

Xenakis utilizou a matemática para compreender e exprimir as bases teóricas subjacentes às suas ideias musicais, levando-o a propor uma formalização da música.

Iannis Xenakis nasceu a 29 de maio de 1922 em Braîla, na Roménia. Era filho de Clearchos Xenakis, um empresário, e Fotini Pavlou, uma pianista, ambos da diáspora grega. A mãe, responsável por apresentar a música ao petiz, morreu precocemente. Num esboço autobiográfico publicado em “Le fait culturel” em 1980, Xenakis confessou ter um fascínio pela música desde o dia em que a mãe lhe ofereceu uma flauta. Sempre ouviu uma grande diversidade de géneros musicais e no colégio, já na Grécia, desde cedo mostrou interesse pela matemática, pelo grego, pela literatura estrangeira e, claro, pela música. Em 1938 mudou-se para Atenas a fim de se preparar para os exames de admissão à universidade. Embora pretendesse estudar arquitetura e engenharia, Xenakis teve também aulas de harmonia e contraponto com o compositor Aristotelis Koundouroff (1896–1969). Em 1940 ingressou no Instituto Politécnico de Atenas, mas a Guerra greco-italiana interrompeu-lhe os estudos. Apesar da vitória da Grécia, não demorou muito a que os alemães se juntassem aos italianos na Batalha da Grécia em 1941. Isso levou à ocupação do eixo da Grécia durante a II Guerra Mundial, que durou até finais de 1944. Xenakis juntou-se à Frente de Libertação Nacional no início da guerra, participando em protestos e manifestações e, mais tarde, fazendo parte da resistência armada. Foi preso várias vezes. Em janeiro de 1945, a sorte malfadada bateu-lhe à porta, ficando gravemente ferido quando foi atingido por estilhaços de uma explosão de um tanque britânico em combates de rua. Sobreviveu por um milagre e o incidente causou-lhe uma terrível ferida facial e a perda de visão do olho esquerdo.

Apesar do funcionamento intermitente da universidade durante esses anos e das atividades em que Xenakis se envolveu, concluiu os estudos em Engenharia Civil em 1947. Quando o governo grego começou a prender ex-membros da resistência, Xenakis foi perseguido e condenado à morte devido ao seu ativismo político. Em 1947 atravessou a fronteira com a ajuda do pai para ir para a América. Na passagem por Paris, em novembro de 1947, decidiu fixar-se nesta cidade que lhe fazia lembrar Atenas antiga. No ano seguinte ingressou como engenheiro no estúdio do famoso arquiteto, urbanista, escultor e pintor Charles-Edouard Jeanneret-Gris (1887–1965), conhecido pelo pseudónimo de Le Corbusier, onde trabalhou 12 anos. Neste período realizou vários projetos não só de engenharia como de arquitetura, entre os quais o Couvent de La Tourette (1955) e o Pavilhão Philips na Exposição Universal de Bruxelas (1958). Os seus primeiros estudos musicais ocorreram por volta de 1948 com os compositores Arthur Honegger (1892–1955), Nadia Juliette Boulanger (1887–1979) e Darius Milhaud (1892–1974). Em 1949-50 estudou com o compositor e organista Olivier Messiaen (1908–1992), que o encorajou a desenvolver as suas ideias musicais aproveitando os conhecimentos ímpares que detinha, que iam da arquitetura à matemática, e a encaixá-los na sua música. Em 1953, Xenakis casou-se com Françoise Gargouil, nascida em 1930, jornalista e escritora que conhecera em 1950. Desta união nasceu, em 1956, a filha Mâkhi que é pintora e escultora.

A música (ocidental) que ouvimos no dia-a-dia desenvolve-se em torno de tonalidades utilizando conjuntos de notas musicais dispostas de uma determinada forma, que dá pelo nome de escala diatónica (maior, menor e outras variantes). É assim desde os tempos da Grécia antiga. A escala diatónica é composta por 7 notas que se repetem a cada oitava. Por exemplo, na escala de Dó, as melodias e os acordes desenvolvem-se, principalmente, em torno do Dó (a tónica), do Sol (a dominante) e do Fá (a subdominante). Os compositores e teóricos da música estão sempre à procura de novas formas de compor e de explorar relações entre notas.

No início do século XX, começou-se a explorar melodias que não seguem tonalidades e em que cada nota tem um papel igualmente importante. Esta música atonal teve em Schoenberg (1847–1951) um dos seus primeiros e maiores proponentes. Schoenberg e a sua escola (conhecida como a Segunda Escola de Viena) usavam todas as 12 notas da escala cromática sem um tom definido e criavam séries não repetidas destas 12 notas que assumiam o papel da escala. As melodias eram compostas empregando estas séries e as suas permutações. No entanto, alguns teóricos achavam que a música serial era ainda muito determinista e que esta linha de composição era limitada. Um destes compositores/teóricos era Xenakis que utilizou processos estocásticos para produzir música e introduzir não-determinismo nas suas composições. Um processo estocástico descreve a evolução de um sistema que depende de eventos aleatórios. Por exemplo, a descrição de um sistema que inclui o lançamento de um dado pode ser feita por um processo estocástico, pois a sua evolução depende de um evento aleatório, o lançamento do dado, em que qualquer uma das faces tem a mesma probabilidade de sair (1/6). Um sistema não determinista é aquele que pode exibir comportamentos diferentes para os mesmos dados iniciais. Xenakis utilizou assim os processos estocásticos para produzir as suas obras e introduzir não-determinismo devido a eventos aleatórios. Usou as propriedades matemáticas que regem os processos estocásticos para “dominar” o não determinismo da sua música. Na sua opinião, este era um dos falhanços das abordagens anteriores, que introduziam não determinismo “descontrolado”.

A música estocástica, termo cunhado por Xenakis, recorria a diversos campos da matemática, nomeadamente, à teoria das probabilidades, teoria dos jogos, teoria dos grupos, teoria dos conjuntos ou à álgebra de Boole. Na sua obra, Xenakis utilizou a mecânica estatística dos gases na elaboração da composição Pithoprakta; a distribuição estatística de pontos no plano em Diamorphoses; a distribuição normal em ST/10 e Atrées; cadeias de Markov em Anologiques; teoria dos jogos em Duel e Stratégie; teoria dos grupos em Nomos Alpha; teoria dos conjuntos em Herma e Eonta; e movimento Browniano em N’Shima. Para efetuar os cálculos e produzir as partituras das suas composições Xenakis recorria frequentemente ao uso de computadores, fundando o Centro de Estudos Matemáticos e Automáticos Musicais. Em 1954 compõe Metastasis, a partitura que apresenta as premissas da música estocástica.

Depois de sair de Le Corbusier, Xenakis dedicou-se à composição e ao ensino, tornando-se rapidamente conhecido como um dos compositores europeus mais importantes da época. Lecionou na Universidade de Indiana entre 1967-72 e trabalhou como professor visitante na Sorbonne entre 1973-89. Foi ainda professor de Música no Colégio Gresham, em Londres. Além de ensinar e compor, Xenakis foi autor de vários artigos e ensaios sobre música. Destes, Musiques Formelles (1963) tornou-se particularmente conhecido. A última obra, intitulada OMega, curiosamente o nome da última letra do alfabeto grego, foi completada em 1997, já doente. Recebeu numerosos prémios, entre os quais o prémio Quioto, equivalente ao Prémio Nobel da Música.

Apesar da sua versatilidade entre Matemática e Música, Xenakis foi sempre rotulado como “matemático.” Depois de vários anos doente, Xenakis entrou em coma em fevereiro de 2001, acabando por morrer no dia 4 desse fatídico mês em Paris com 78 anos. Outros voos o levaram para grandiosas composições... outras composições o levaram para eternas melodias...

 

                 Iannis Xenakis (1922-2001)

 

Fonte: Correio dos Açores / 24 de agosto de 2017