Notícia -A A +A

GLORIA FLOW: o Primeiro Estudo Sistemático Sobre a Zona de Fratura Açores-Gibraltar - Notícia OVGA 28-05-2020

 

A Falha Glória tem cerca de 1000 km e é um dos três segmentos da conhecida Zona de Fratura Açores-Gibraltar (ZFAG), onde foi registado o sismo de maior magnitude instrumentalmente medido no Atlântico Norte, Europa e África.

Navio Meteor durante a campanha oceanográfica M162 – GLORIA FLOW, realizada no Oceano Atlântico.

Fotografia de Nikolas Warnken

 

A campanha oceanográfica M162 - GLORIA FLOW foi o primeiro estudo sistemático ao longo do segmento central da fronteira de placas Açores-Gibraltar. As novas observações vão permitir um novo entendimento da atividade geológica.

 

A fratura Açores-Gibraltar

A zona de fratura Açores-Gibraltar, falha Açores-Gibraltar ou ainda Falha Glória, é uma extensa falha geológica do Atlântico Nordeste, que se estende ao leste, desde o final do rifte da Terceira, a sueste de São Miguel, nos Açores, prolongando-se até ao Estreito de Gibraltar.

O nome do troço da falha Açores-Gibraltar, Falha Glória, teve a sua origem no sonar GLORIA, acrónimo de Geological Long Range Inclined Asdic, um dispositivo acústico, com o qual foi identificada pela primeira vez, em 1971. O GLORIA foi o primeiro sonar lateral capaz de mapear estruturas geológicas do mar profundo.

A Falha Glória, com cerca de 1000 km de expressão morfológica no fundo do mar, corresponde ao segmento oriental da fronteira de placas Açores-Gibraltar, a sudoeste da Península Ibérica. Esta zona foi alvo de numerosos estudos de geologia e geofísica marinha que remontam a processos tectónicos geradores de grandes sismos e tsunamis, como os que ocorreram em 1755 e 1969.

Uma parte deste segmento menos conhecido da falha já tinha sido descrita por cientistas portugueses e alemães. Da equipa de cientistas portuguesa destaca-se Luís Batista, geólogo no Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) e, Pedro Terrinha, docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e chefe da Divisão de Geologia e Georrecursos Marinhos no IPMA.

Foi na Falha Glória que teve origem o sismo de maior magnitude instrumentalmente medido no Atlântico Norte, Europa e África, com magnitude 8.4 na escala de Richter, no ano de 1941.

 

Campanha oceanográfica M162 – GLORIA FLOW

De 5 de março a 5 de abril de 2020 decorreu a campanha oceanográfica M162 – GLORIA FLOW, a bordo do navio alemão Meteor. A missão foi liderada por Christian Hensen, do GEOMAR Helmholtz-Zentrum für Ozeanforschung.

O projeto foi financiado pela agência alemã German Science Foundation e teve como objetivo principal compreender os processos geológicos que interferem na circulação de fluidos subterrâneos no oceano profundo, compreender as relações entre a circulação de fluidos e a sismicidade e, entender as interações geosfera-biosfera-hidrosfera.

A investigação da fratura Açores-Gibraltar abordou também um segmento chave do rifte da Terceira. Esta é uma estrutura tectónica a nordeste do planalto dos Açores e constitui um dos segmentos do ponto triplo que separa as placas litosféricas Americana, Euroasiática e Africana.

No decorrer da campanha foi usado um conjunto de técnicas de amostragem indireta e direta da crusta oceânica profunda, incluindo sistemas acústicos de prospeção, medição de propriedades térmicas da crusta, captação de imagens de vídeo e amostragem de sedimentos e fluidos.

A equipa portuguesa foi constituída por Pedro Terrinha, João C. Duarte, Helena Adão, Luís Batista, Katarzyna Scroczynska e Pedro Nogueira, cientistas do IPMA, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa – Instituto Dom Luiz e da Universidade de Évora – Instituto de Ciências da Terra e Centro de Ciências do Mar e do Ambiente.

Durante a campanha foram recolhidas 45 sondagens de gravidade ao longo de cerca de 1000 km da fratura Açores-Gibraltar, a mais longa com 4,85 metros de comprimento, assim como imagens de fundo e sondagens de fluxo de calor.

A análise visual das sondagens de gravidade permitiu verificar que:
- Existem muitos eventos de transportes de massa (turbiditos) que deverão estar relacionados com sismos;

- Há vários eventos de alterações químicas cíclicas relacionadas com a alternância da ação de bactérias, animais do fundo marinho e de fluidos subterrâneos profundos;

- Existe a presença de eventos vulcânicos longínquos.

A campanha oceanográfica M162 – GLORIA FLOW decorreu entre 5 de março e 5 de abril deste ano.

Fotografia de Pedro Nogueira

 

As análises químicas subsequentes permitirão classificar e compreender os processos superficiais e profundos, e a análise isotópica permitirá datar sismos antigos.

Nas várias amostram recolhidas do fundo do mar foi possível encontrar dezenas de depósitos que podem corresponder a grandes sismos. Estes, quando ocorrem, geralmente produzem grandes deslizamentos de terra submarinos, deixando depósitos que permitem detetar quando ocorreram grandes eventos sísmicos.

Para o processo, é colocado um tubo nos sedimentos, com recurso a uma espécie de grande agulha com três a cinco metros. Depois, os tubos são trazidos à superfície e abertos ao meio para análise.

O balanço da equipa portuguesa que integrou a campanha é bastante positivo, uma vez que os dados recolhidos permitirão realizar trabalhos a médio e longo prazo e submeter novos projetos.

 

Investigação em harmonia com a vida marinha

Os sistemas acústicos utilizados durante a campanha M162 – GLORIA FLOW não são potencialmente nocivos para os mamíferos marinhos. No entanto, houve um grupo de observação a acompanhar as experiências.

Durante a campanha foram ainda recolhidas amostras dos sedimentos para o estudo da componente biológica, com o objetivo principal de relacionar os ambientes estudados com as comunidades de nematodes marinhos de vida livre, associados a estes sedimentos de mar profundo.

A ciência prima por não perturbar os ambientes naturais e, a perturbação mínima detetada verifica-se numa dimensão muito menor à da atividade humana em geral. Não obstante, os cientistas preocupam-se com o impacto ínfimo que a ciência pode ter em todos os ambientes.

Procurou-se minimizar ao máximo o impacto sobre os objetos de estudo, sendo que a amostragem física do fundo oceânico é, em geral, inócua para os ambientes aí existentes .

Recentemente, tivemos a oportunidade de entrevistar João C. Duarte, docente no Departamento de Geologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, investigador no Instituto Dom Luiz e membro da equipa portuguesa que participou nesta campanha oceanográfica.

 

Quais os objetivos da campanha M162 – GLORIA FLOW?

Estudar um segmento praticamente inexplorado da fronteira de placas [tectónicas] Açores-Gibraltar, chamado Falha Glória. Esta fronteira corresponde a uma zona de falha que separa a placa Euroasiática da placa Africana, e encontra-se sob o fundo do mar a profundidades que variam, em geral, entre os 3000 e os 6500 metros. Esta foi a primeira vez que se recolheram um conjunto de dados geológicos, geofísicos, geoquímicos e biológicos de forma sistemática ao longo desta falha.

A motivação científica por detrás desta campanha era tentar compreender o papel que os fluidos, como a água, têm na atividade e evolução deste tipo de falhas. Os fluidos podem atuar como um lubrificante da crusta terrestre e das suas falhas, enfraquecendo-as e facilitando a sua deformação e movimento. Tal, pode interferir com o ciclo sísmico da falha (a periodicidade com que ocorrem os sismos). A circulação destes fluídos é também essencial no transporte de elementos do manto para a crusta, podendo ter um papel fundamental no desenvolvimento e evolução da vida nestes locais inóspitos do planeta.

 

De que forma os conhecimentos obtidos nesta campanha podem ajudar-nos a preparar e prevenir impactos de sismos como o de 1755, que derrubou Lisboa?

Um objetivo importante da campanha era o de recolher dados científicos de uma zona de fronteira de placas que sabemos ter gerado sismos de grande magnitude (acima de magnitude 8), como os sismos de 1755 e de 1941. Os resultados desta campanha vão acima de tudo permitir conhecer melhor esta estrutura que, por se estender na sua larga maioria ao longo do fundo do mar, a profundidades que chegam a mais de 6000 metros, tem sido muito difícil de estudar. Perceber as suas características (como a sua geometria e outras propriedades físicas) é extremamente importante para o desenvolvimento de modelos conceptuais e computacionais acerca do comportamento desta estrutura. Tal, vai permitir perceber como esta zona funciona do ponto de vista da sua atividade tectónica, e como poderá funcionar no futuro, o que nos poderá ajudar a mitigar os efeitos de abalos sísmicos e tsunamis associados.

Um elemento muito importante da campanha foi a recolha de tarolos de sedimentos do fundo do mar, entre os quais se identificam um tipo particular de depósitos sedimentares (chamados turbiditos) que são gerados quando há grandes sismos. Encontrámos muitos destes depósitos. Agora, se os datarmos, podemos ter uma ideia do período de recorrência dos grandes sismos (ou seja, de quanto em quanto tempo estes ocorrem). No entanto, esta informação é estatística, sendo no dia de hoje ainda impossível prever exatamente quando poderá voltar a ocorrer um sismo de grande magnitude. Mas, em sentido estrito, não é o novo conhecimento recolhido que vai permitir preparar-nos e prevenir-nos melhor para os impactos de grandes sismos como o de 1755. Já há muito tempo que sabemos que este tipo de sismos pode ocorrer a qualquer momento, e já se sabe também o que é preciso fazer para nos preparar-nos: construções antissísmicas, bons sistemas de alerta de tsunamis e muita educação. Acima de tudo, são os nossos comportamentos como sociedade que fazem com que estes processos naturais sejam um risco para nós, e não o processo natural em si.

 

Porquê?

Julgo que tem a ver com uma questão de escala. Os processos geológicos ocorrem a escalas de tempo e de espaço que são difíceis de compreender. Só muito recentemente a humanidade ganhou consciência de que tem o poder para mitigar este tipo de fenómenos. Este poder deveu-se ao enorme avanço da ciência e do conhecimento acerca do mundo natural. No entanto, este progresso é relativamente recente e assimétrico, e há um certo atraso entre o aumento do conhecimento científico e as consequências benéficas que este pode ter para a sociedade. Há mesmo sociedades que não o aceitam. Daí a importância extrema de uma divulgação científica de qualidade que permita fazer o conhecimento científico chegar às pessoas.

A atividade da fronteira de placas Açores-Gibraltar representa algum perigo para as populações dos Açores ou de Portugal Continental?

A atividade de uma zona de fronteira de placas é um processo natural e uma parte essencial da dinâmica do nosso planeta. Há vários estudos que indicam que o nosso planeta é diferente (tem um ciclo da água e vida associada) precisamente porque tem tectónica de placas. São estes movimentos tectónicos que dão origem à formação de montanhas, que permitem a precipitação de chuvas em determinados locais, e por exemplo, contribuem decisivamente para a geração de recursos minerais que permitiram a Humanidade florescer. As zonas de fronteiras de placas são por natureza locais onde ocorrem sismos e erupções vulcânicas.

Estes processos não são bons nem maus por natureza. As erupções vulcânicas são essenciais para regular a atmosfera e para manter os solos férteis. As próprias ilhas dos Açores são um resultado da atividade destas falhas e das erupções vulcânica associadas. Sem estas os Açores não existiriam. O que faz com que estes processos sejam um risco para o Homem, é precisamente o nosso comportamento como sociedade. Os vulcões só são, geralmente, um risco se construirmos habitações em locais de risco. Em relação aos sismos, é costume dizer-se que não são os sismos que matam as pessoas, mas sim a queda das habitações. Se estivermos na rua durante um sismo, numa zona aberta e relativamente plana não nos acontece nada. Tudo tem a ver com a forma com que mitigamos o risco, ou seja, na forma como nos preparamos. Se construirmos edifícios resistentes os sismos não causam danos. 

 

Quais os próximos passos da equipa envolvida nesta campanha, no âmbito deste estudo?

Agora, os próximos passos serão o processamento dos dados digitais e o desenvolvimento de um conjunto de análises às amostras de sedimentos, gases e materiais orgânicos. Faremos análises geológicas (de identificação mineralógica, por exemplo), análises físicas (por exemplo, das propriedades magnéticas dos sedimentos), análises biológicas e análises geoquímicas. Estas vão incluir, por exemplo, análises de identificação de elementos químicos e datações isotópicas. Este trabalho irá resultar num conjunto de publicações que serão submetidas a revistas internacionais da especialidade.

Apresentaremos também os resultados em reuniões e congressos internacionais. Alguns dos resultados serão também usados para teses de Mestrado e Doutoramento.

De qualquer das formas, gostava de salientar que este foi um primeiro passo. A Falha Glória é enorme em termos de dimensões e encontra-se essencialmente inexplorada. Deste modo, estes novos dados vão permitir fazer novas perguntas e abrir as portas para campanhas futuras. Contamos, portanto, submeter em breve propostas para novos projetos no sentido de continuar a explorar esta região do planeta. Temos em mãos trabalho para muitas décadas. Este é um início e é bom estar a vivê-lo.

 

Esta entrevista foi editada para fins de clareza e extensão.

 

Fonte: natgeo.pt (13-05-2020)